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É por isso que o silêncio de Cavaco Silva pesa sobre a actual suspeita de pseudovigilância ilegal às comunicações dos seus assessores por parte de "alguém" do gabinete de José Sócrates.
Como assinala um analista tão isento quanto António Capucho, cavaquista e conselheiro de Estado, quem cala consente.
Ou seja, podemos concluir que Cavaco Silva acredita, ou tem a certeza - o que seria infinitamente mais grave -, de que "alguém" no gabinete do primeiro--ministro anda a ouvir as conversas dos seus colaboradores. Mais: anda a cometer um crime, como tal punido na lei.
2. Depois desta notícia, ao contrário do que advoga António Capucho invocando "razões de Estado", não é possível o assunto "ficar circunscrito a Belém e S. Bento".
Este não é um qualquer "disparate de Verão", como foi classificado no discreto e surpreendente ligeiro esclarecimento de José Sócrates.
Estamos perante uma acusação gravíssima que vai inquinar a campanha eleitoral e merecer a devida valoração por parte dos eleitores que se preocupam com o País.
Muitos eleitores vão, no mínimo, perguntar-se antes de votarem: será que José Sócrates, o primeiro-ministro, tem na sua estrutura pessoas capazes de tudo, até de ilegalidades, para andarem um passo à frente na gestão da informação?
Até agora, Cavaco Silva demonstrou, com o seu silêncio, que quer que os portugueses ponderem essa possibilidade.
3. Para que não restem dúvidas: é absolutamente condenável a estratégia da Presidência da República nesta questão.
Ou a notícia é falsa e já deveria ter sido desmentida; ou a notícia corresponde ao que o Presidente pensa e só poderia ter duas consequências: queixa na Procuradoria e demissão do Governo.
Em democracia não se pode abusar da suspeita, uma palavra que parece, aliás, ser o eixo central da campanha do PSD. Em democracia, a este nível de órgãos de soberania, as suspeitas calam-se e as certezas exigem coragem e uma comunicação frontal com os cidadãos.
No meio está um pântano para onde acaba de escorregar um dos principais símbolos do Estado português. Cavaco Silva, o presidente de todos os portugueses, está hoje, ele próprio, perante a suspeita de estar a participar activamente na campanha eleitoral. Sem provas, sem dar a cara, está a patrocinar que se atire lama sobre José Sócrates.
4. Pessoalmente, não tenho qualquer dúvida: a relação entre o Presidente da República e o primeiro-ministro já está a um nível que faz mal à democracia.
Chegou-se aqui com muita culpa de José Sócrates (o Estatuto dos Açores foi uma declaração de guerra), mas tudo se agravará se Cavaco Silva sucumbir à estratégia de olho por olho, que neste caso pode começar a ser interpretada como um apoio formal ao PSD e a Manuela Ferreira Leite.
Num quadro de maior fragmentação do espectro partidário, como se prevê que possa sair das próximas eleições, esta agressividade entre os dois homens vai ter impacto.
A vida política portuguesa não está a caminhar no bom sentido - e tudo isto só dá razão a quem continua a engrossar as hostes do abstencionismo ou do voto de protesto.
por João Marcelino