quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Um silêncio suspeito

1. Numa Presidência da República nunca há "fontes". Há factos, comentários ou opiniões, que um Presidente, em certas alturas, quer tornar do domínio público sem se comprometer por via oficial, nem sequer com uma nota. E há colaboradores para executarem a vontade e a estratégia do Presidente. Quando não o fazem, obviamente passam imediatamente a ex-colaboradores.

É por isso que o silêncio de Cavaco Silva pesa sobre a actual suspeita de pseudovigilância ilegal às comunicações dos seus assessores por parte de "alguém" do gabinete de José Sócrates.

Como assinala um analista tão isento quanto António Capucho, cavaquista e conselheiro de Estado, quem cala consente.

Ou seja, podemos concluir que Cavaco Silva acredita, ou tem a certeza - o que seria infinitamente mais grave -, de que "alguém" no gabinete do primeiro--ministro anda a ouvir as conversas dos seus colaboradores. Mais: anda a cometer um crime, como tal punido na lei.

2. Depois desta notícia, ao contrário do que advoga António Capucho invocando "razões de Estado", não é possível o assunto "ficar circunscrito a Belém e S. Bento".

Este não é um qualquer "disparate de Verão", como foi classificado no discreto e surpreendente ligeiro esclarecimento de José Sócrates.

Estamos perante uma acusação gravíssima que vai inquinar a campanha eleitoral e merecer a devida valoração por parte dos eleitores que se preocupam com o País.

Muitos eleitores vão, no mínimo, perguntar-se antes de votarem: será que José Sócrates, o primeiro-ministro, tem na sua estrutura pessoas capazes de tudo, até de ilegalidades, para andarem um passo à frente na gestão da informação?

Até agora, Cavaco Silva demonstrou, com o seu silêncio, que quer que os portugueses ponderem essa possibilidade.

3. Para que não restem dúvidas: é absolutamente condenável a estratégia da Presidência da República nesta questão.

Ou a notícia é falsa e já deveria ter sido desmentida; ou a notícia corresponde ao que o Presidente pensa e só poderia ter duas consequências: queixa na Procuradoria e demissão do Governo.

Em democracia não se pode abusar da suspeita, uma palavra que parece, aliás, ser o eixo central da campanha do PSD. Em democracia, a este nível de órgãos de soberania, as suspeitas calam-se e as certezas exigem coragem e uma comunicação frontal com os cidadãos.

No meio está um pântano para onde acaba de escorregar um dos principais símbolos do Estado português. Cavaco Silva, o presidente de todos os portugueses, está hoje, ele próprio, perante a suspeita de estar a participar activamente na campanha eleitoral. Sem provas, sem dar a cara, está a patrocinar que se atire lama sobre José Sócrates.

4. Pessoalmente, não tenho qualquer dúvida: a relação entre o Presidente da República e o primeiro-ministro já está a um nível que faz mal à democracia.

Chegou-se aqui com muita culpa de José Sócrates (o Estatuto dos Açores foi uma declaração de guerra), mas tudo se agravará se Cavaco Silva sucumbir à estratégia de olho por olho, que neste caso pode começar a ser interpretada como um apoio formal ao PSD e a Manuela Ferreira Leite.

Num quadro de maior fragmentação do espectro partidário, como se prevê que possa sair das próximas eleições, esta agressividade entre os dois homens vai ter impacto.

A vida política portuguesa não está a caminhar no bom sentido - e tudo isto só dá razão a quem continua a engrossar as hostes do abstencionismo ou do voto de protesto.

por João Marcelino

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