terça-feira, 7 de abril de 2009

Manuel Pina--Os politicos são sócios dos patrões

Se ser gato é, como diz, “a liberdade-livre” – e ele sabe porque vive com oito –, o que é Manuel Pina senão um felino também? O homem que todos os dias habita esta página é poeta. Chamem-lhe amigo.
"Ainda não é o fim nem o princípio do mundo. Calma, é apenas um pouco tarde". Diria que o seu título de 1974 nunca definiu tão bem o estado mundial das coisas?
Diria, mas não digo. Hoje sou mais céptico do que em 1974.
As suas crónicas são cartoons sem desenhos ou a realidade, neste momento, supera a sátira?
Acho que qualquer português minimamente lúcido não consegue distinguir hoje entre realidade e tragicomédia (comédia por conta da realidade política e tragédia por conta da social).
Se, como escreveu, "a RTP é a lavandaria do regime", a TVI que Sócrates ameaçou processar é o quê? Uma espécie de jornalista iraquiano que atirou os sapatos a George W. Bush?

TVI e RTP completam-se, uma expõe as nódoas, outra limpa-as. Como também escrevi há pouco, o jornalismo é uma actividade do sector do tratamento do lixo. Se o jornalismo fosse despejado nos nossos rios há muito que os rios teriam morrido de poluição e de vergonha.
Na Quadratura do Círculo, Pacheco Pereira chamou-lhe "ruído"; Lobo Xavier disse "conspiração". Que termo usa para definir o caso Freeport e o desempenho da justiça nesta matéria?
O caso Freeport é um sintoma. Há algures, não sei onde, um cancro em estado muito avançado na sociedade portuguesa.
Sendo licenciado em Direito, a justiça é coisa que o envergonha ou, apesar de tudo, o jornalismo embaraça-o mais?
Os problemas na justiça e no jornalismo são a erupção que fica à vista de males anteriores e muito maiores. Os tribunais não fazem as leis, aplicam-nas. E os jornalistas só dançam (os que têm pé para a dança) conforme música do tempo.
Mário Soares afirmou esta semana, no Porto, que "os patrões do jornalistas" são os responsáveis pela "falta de escrúpulos" daquilo que tem sido publicado em relação ao Freeport. Tendo dito uma vez que "nunca como hoje houve tanta canalhice e tanta impunidade nos jornais", significa que concorda globalmente com o ex-presidente da República?
O que Mário Soares omite é que os patrões dos jornalistas e os patrões dos políticos são os mesmos. Com uma diferença: enquanto os jornalistas são seus empregados (alguns, deve ser dito, empregados recalcitrantes), os políticos são seus sócios.
Está ao lado dos professores na luta contra o Ministério da Educação. Agora a tutela desafiou-o a dizer quando e qual o secretário de Estado que chamou "professorzecos" aos docentes. Vai ceder ou fazer ouvidos moucos?
A notícia veio nos jornais e o ME não a desmentiu. Deu-me a duvidosa honra (atendendo aos protagonistas) de me desmentir a mim. Não sei, pois não estive na AR, qual dos dois “secretariozecos” terá chamado “professorzecos” aos docentes porque a notícia (repito: não desmentida) não o esclarece. Mas, de qualquer modo, apesar de tudo, dou mais crédito aos jornais, a alguns jornais, do que ao actual Ministério da Educação e seus “desmentidos”.
Ainda no rescaldo do primeiro dia de Abril, que mentira sobre Maria de Lurdes Rodrigues, se publicada, passaria tranquilamente por verdade?
A de que ela teria reconhecido a sua impotência – não a sua incompetência, que nisso ninguém acreditaria já que faz parte dessa incompetência não reconhecer que é incompetente – e se teria demitido
Pode revelar qual o segredo que torna os gatos tão especiais e definitivos na vida dos poetas? Há o seu caso, o de Cesariny, o de Eugénio de Andrade...
Um amigo meu, já morto, dizia que gostava mais de gatos do que de cães porque não há gatos-polícia. Eu gosto de cães (e, com excepção de alguns de duas patas, de todos os outros animais), mas julgo que os gatos seduzem os poetas porque os gatos – como a poesia, que é liberdade-livre – são seres livres. A sua domesticidade é aparente, a suficiente para poderem assegurar-se a liberdade. Pode ensinar-se tudo a um gato, menos a não ser gato. Já viu algum gato deixar-se humilhar a fazer exercícios de circo?
Um poeta tem medo de quê?
De tudo, principalmente da poesia. Por isso é que, como diz Holderlin (acho que é Holderlin), incapaz de suportar sozinho a vida, canta.
A poesia cura-o de todas as dores ou inflama-as?
A poesia é, tanto quanto das palavras, uma arte da memória. A dor, na poesia, é memória da dor. Nesse sentido, é construção, “fingimento”. Fingimento que, como diz Pessoa, chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente. Uma vez ouvi, numa feira, um vendedor de banha de cobra dizer uma coisa espantosa: “O dente não dói, o que dói é a cavidade dentária”. Eu diria o mesmo da poesia, o que dói é a “cavidade poética”, aquilo que, nela, é vazio.
Se, como diz, “o homem é uma criança eterna” que “só se torna adulto na morte”, parte da sua literatura infantil devia ser lida por adultos também?
A literatura não é “para crianças” nem “para adultos”. É ou não é (e, nos melhores casos, é e não é ao mesmo tempo).
Ontem, na homenagem que lhe foi prestada em casa, no Sabugal, o Teatro Pé de Vento apresentou a peça “O sábio fechado na sua biblioteca”. Revê-se nesta imagem?
Não, nem sou sábio (a não ser que saber isso seja uma forma de sabedoria) nem estou fechado numa biblioteca, embora não saiba (lá está: não sou sábio) onde é que estou fechado. Os livros que amo são os que libertam, não os que fecham. Talvez por isso, a maior parte deles é de poesia.
O tempo das homenagens fá-lo sentir que o tempo está mais perto do fim ou que só agora começa a fazer sentido?
Entendo as “homenagens” (acho que se quer referir à do Sabugal) como gestos de estima que, mesmo que excessivos, seria arrogante e descortês enjeitar. Foi com esse espírito que aceitei um dia uma condecoração e tenho aceitado alguns prémios. As homenagens ou os prémios não nos fazem melhores nem piores.
"Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo", disse Jorge Luís Borges. A intenção dele serve a sua também?
Sim, a única salvação (estranha palavra) é pelo amor. A melhor literatura é sempre, de algum modo, um acto de deslumbramento e amor (ou de amizade, que é a mais alta forma do amor), mesmo quando é – e, às vezes, justamente porque o é – assassina ou suicidária. E, se quer que lhe diga uma coisa surpreendente, acho que o melhor jornalismo também.
Helena Teixeira da Silva
domingo, 5 de Abril de 2009 15:41 por jnonlineadmin

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