1.A crise global, de que os meios de comunicação social todos os dias nos falam, está longe de ter chegado ao fim. Ainda não batemos no fundo. Pelo menos na Europa, onde as instituições da União ainda não foram capazes de delinear uma estratégia conjugada ou convergente de ataque à crise com a necessária coerência interna. Portugal, infelizmente, não é excepção. Nem podia ser. A crise veio de fora, não foi gerada cá dentro. Alguns partidos da oposição parece não o terem ainda compreendido. As medidas, até agora, tomadas para a combater, em Portugal e não só, têm sido casuísticas, dispersas, atendendo talvez às necessidades mais urgentes, não digo o contrário, mas sem obedecerem a um plano de conjunto, que, pelo menos, tenha sido divulgado, explicado e compreendido pelos cidadãos. E isso, do meu ponto de vista, deveria ter sido uma prioridade essencial para trazer a tão necessária confiança às pessoas, no seu conjunto. Ora estamos longe de a ter, infelizmente.
O desemprego continua a crescer, sem que haja esperança de abrandamento. Todos os dias sabemos que fecham fábricas e pequenas e médias empresas, comerciais e industriais. A agricultura, que poderia ser um recurso, não parece ter arrancado. Por outro lado, não há informação suficiente que nos dê uma perspectiva de conjunto do que o Governo está a fazer para valer aos mais necessitados, que perderam os seus empregos e, às vezes, também, as suas casas. Sabemos que certos bancos receberam milhões para evitar falências, que sem esse auxílio seriam inevitáveis e indesejáveis. Mas não conhecemos suficientemente como foi - ou vai ser - gasto esse dinheiro. E se os prémios e as remunerações dos gestores continuam a ser milionários.
No sábado passado tivemos a notícia, divulgada pelas televisões, vinda do Banco de Portugal, de que, já em tempo de crise - o que é inacreditável -, portugueses individuais e empresas depositaram muitos milhões, não percebi quantos, nos mesmos "paraísos fiscais" do passado. Era útil que sobre o assunto possa ser dada à opinião pública, por quem de direito, uma informação completa e uma lista em detalhe com os nomes desses oportunistas que não aprenderam nada com a crise e só pensam no dinheiro...
Porque se a crise gera necessariamente desemprego, o desemprego gera mal-estar social e, a prazo, revoltas. É o que está a acontecer já em alguns países europeus. E - cuidado! - não é impossível que aconteça também entre nós. Ora só há uma maneira inteligente de controlar essas eventuais revoltas: prevê-las, em tempo útil, para as tentar evitar. Não por meios repressivos, que só seriam contraproducentes. Mas dialogando com os partidos da oposição - com sentido de responsabilidade - e com os sindicatos, que estão no terreno, e com as associações de todo o tipo, que se proponham enquadrar o descontentamento crescente. Porque senão as revoltas legítimas dos que se sentem desesperados podem gerar o caos e o caos leva à violência cega. Trata-se de um círculo vicioso que importa prever e não deixar que se desenvolva: crise, desemprego, mal-estar social, violência, caos, aumento da crise, democracia posta em causa...
O diálogo responsável entre o Governo e as forças políticas e sindicais - não o debate público, mormente em tempo de eleições - é indispensável. É ao Governo que compete a iniciativa. Não se trata, repito, de obter dividendos de tipo eleitoral. As eleições são outra questão, importante, sem dúvida, mas não são elas que vão vencer a crise. Trata-se de uma prioridade: evitar que a crise degenere em revolta e violência cega, descredibilizando, ao mesmo tempo, os partidos - todos, sem excepção - e os sindicatos, das diferentes confederações e, por essa via, pondo em causa a própria democracia.
Escrevo isto, pensadamente. Não sou pessimista. Considero-me realista e procuro ver com alguma distância. Alerto, os meus compatriotas, para que pensem pelas suas cabeças, se mobilizem e, assim, possamos evitar o pior. A confiança em nós mesmos - e no nosso sistema democrático, que vai festejar 35 anos - é o que nos cumpre, acima de tudo, salvaguardar.
Ninguém sabe ainda se o dinheiro distribuído - ou prometido - pelo Estado aos bancos e a algumas grandes empresas - portuguesas e estrangeiras - virá ou não a ter consequências positivas. Como sucede, de resto, nos outros países europeus. Se não forem acompanhadas por medidas concretas de auxílio, que cheguem aos mais necessitados, é certo que a confiança não se fará sentir. Bem pelo contrário. E quais são esses necessitados? Os desempregados de pequena e longa duração, os jovens que saem das universidades e escolas à procura do primeiro emprego e encontram as portas fechadas, os pequenos comerciantes, industriais e agricultores, a caminho da falência, os imigrantes que ficaram sem trabalho e os excluídos sociais, os mais idosos, cujas reformas não chegam para viver com dignidade e fazem parte da legião imensa da pobreza envergonhada.
Todos os dias nos dizem que as taxas do desemprego e da pobreza sobem. Mas, dizem-nos, de uma forma abstracta, recorrendo a números totais, à escala do País. É preciso que se façam inquéritos credíveis sobre o que se passa nos bairros proble- máticos das grandes cidades, mas também nas aldeias rurais mais afastadas. O que interessa são as pessoas. Só com esse conhecimento concreto podemos avaliar das desigualdades efectivas que se vivem no País e o que deveremos fazer para lhes melhorar as situações.
2.A Justiça vai mal. Posso mesmo dizer, sem exagero, muito mal. É talvez, a seguir ao aumento do desemprego (provocado pela crise), das desigualdades sociais (que aumentaram sensivelmente, nos últimos anos) e da pobreza, abaixo dos limites mínimos exigíveis de uma parte considerável da população, o sector da Justiça é dos que está pior e mais desacreditado. Não porque não haja bons magistrados judiciais e do Ministério Público e bons polícias, na Judiciária. Há. E alguns até excelentes. Está fora de causa. Mas porque, nos últimos anos - por razões de corrupção ou outras -, a interpenetração entre alguns juízes, agentes do Ministério Público e polícias, com responsabilidades na Judiciária e certos meios da comunicação social (jornalistas "especializados", no mau sentido, em fugas de informação) têm vindo a desacreditar a Justiça, com a questão do segredo de justiça, particularmente tratando-se de processos que, por uma razão ou por outra, assumem maior expressão mediática ou envolvem personalidades políticas, empresariais ou futebolísticas. Os processos eternizam-se, as fugas de informação vindas dos inquiridores (Ministério Público ou Polícia Judiciária, donde poderia vir, além deles?) são mais do que muitas, fazendo-se "julgamentos na praça pública", de que ninguém está livre, baseados em boatos, rumores ou falsas informações. Sem que ninguém pareça ter força para pôr termo a uma situação deletéria, que envenena o País e destrói as instituições que nos regem.
É preciso dizer, basta! No Expresso último, o jornalista Miguel Sousa Tavares, num artigo notável e corajoso, como é seu timbre, intitulado "Como fritar um primeiro-ministro em lume brando" escreve, em síntese: "Desgraçadamente, chegámos a um ponto em que qualquer pessoa, por mais inocente que esteja, e em especial se for figura pública, pode ser executada em lume brando na praça pública." E ainda: "É grave que isto possa suceder com qualquer cidadão; é gravíssimo que isto possa suceder com o próprio primeiro-ministro, não por ser José Sócrates, no caso, mas pela saúde pública do regime democrático."
É também por isso que escrevi acima: basta! É uma situação que desacredita profundamente a Magistratura do Ministério Público e a Polícia Judiciária, bem como os órgãos da comunicação social que se façam eco de boatos e "fugas de informação" sem consistência ou de "campanhas" que tenham por objectivo destruir adversários políticos. Basta! Repito. São erros que se pagam caro. Se não há provas, digam-no. Se há, apresentem-nas no tribunal respectivo, em tempo oportuno. Mas não arrastem os processos meses e meses, envenenando as populações com as piores suspeitas. É um descrédito para a Justiça e para o País, com reflexos negativos na própria crise que atravessamos. Trate-se do caso Freeport ou dos McCann, do Apito Dourado, da Casa Pia ou dos diversos autarcas com processos pendentes há anos. Uma vergonha nacional! Ora, como disse há dias: "Já enjoa"... C.
Mário Soares
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