Artigo de Helena Pinto, publicado no jornal Esquerda nº 34
A violência doméstica e especialmente a violência contra as mulheres tem sido tema da agenda política. Não foi um processo fácil, organizações feministas e organizações de defesa dos direitos das vítimas lutaram muito para que este tema saísse da obscuridade e passasse a ser assumido como um tema de Direitos Humanos e de cidadania - um tema político.
Nesta Legislatura tem sido objecto de debate na Assembleia da República em diversas ocasiões, em grande parte devido à iniciativa do Bloco de Esquerda, que apresentou diversas iniciativas legislativas para aprofundar o combate a este crime e melhorar a protecção das vítimas.
É importante que se faça uma avaliação do caminho percorrido, sobretudo desde o ano 2000, quando a violência doméstica voltou a ter o estatuto de crime público, possibilitou, por um lado, uma maior consciência social deste crime e, por outro, obrigou a que se desenvolvessem serviços de apoio.
Numa breve avaliação verificamos que o patamar do combate contra a violência doméstica se alterou e veio, inclusive, colocar novos desafios.
Passado que foi o período de exigência de mais e melhores serviços de apoio - desde os gabinetes de atendimento até às casas abrigo (sem prejuízo de continuarem a ser necessários serviços e sobretudo melhorar a sua qualidade), hoje o debate centra-se muito no papel do sistema judicial.
É evidente que este crime tem que ser alvo de uma condenação social como condição fundamental para a sua redução. Mas para que esta condenação seja efectiva e para que os agressores sintam repúdio social pelo seu comportamento, este crime também tem que ser punido. E é exactamente neste patamar que hoje nos encontramos. Este crime ainda é impune e insuficientemente reprimido.
Basta verificar o número de queixas, o número de processos que chegam a Tribunal, o número de sentenças e o número de condenações, para se constatar que alguma coisa não bate certo. E esta impunidade está a dar um sinal errado à sociedade, um sinal de tolerância perante a violência doméstica, e a entravar o processo de alteração do ónus da mudança, hoje centrado na vítima que tem que sair de casa, encontrar novo emprego, os filhos e filhas têm que mudar de escola. Em suma a vítima é que tem que recomeçar tudo, deixando muita coisa para trás.
No momento em que se exigia do poder político novas medidas, que viessem no sentido de alterar esta situação, surge uma Proposta de Lei do Governo que levanta sérias reservas quanto ao seu efeito prático, caso não venha a sofrer alterações no processo de debate na especialidade.
O ponto do debate político é sobre a necessidade de criar Juízos Especializados nos Tribunais, que de uma forma multidisciplinar e com a formação adequada tratem de todos os processos conexos numa situação de violência doméstica. A Proposta de Lei do Governo não trata sequer a questão dos Tribunais.
O ponto do debate político é a introdução dos meios electrónicos de controlo à distância (pulseiras electrónicas) para fazer cumprir as ordens de afastamento dos agressores de modo a contribuir, de facto, para retirar toda a responsabilidade de mudança do lado da vítima, onde hoje está centrada. E continuamos à espera do cumprimento de uma promessa que já tem 3 anos.
E é neste contexto, quando se debatem novos e mais ambiciosos passos, que a Proposta de Lei do Governo introduz medidas que podem significar um retrocesso no caminho que tem vindo a ser percorrido desde o ano 2000.
Introduz um estranhíssimo "Estatuto de vítima" que depende do pedido da própria e é documentado. Mesmo abrindo excepções, o que é facto é que a Proposta de Lei coloca como norma geral que o estatuto de vítima depende de apresentação de queixa, é a pedido da própria, e faz depender da sua atribuição uma série de apoios.
Não faz sentido nenhum. Uma pessoa é vítima a partir do momento em que sofreu um crime e os apoios a que o Estado está obrigado a prestar não devem depender de um cartão de vítima. É este o sentido do crime público e não outro qualquer.
O crime de violência doméstica é de facto um crime "especial" e por isso mesmo na última revisão do Código Penal foi autonomizado, passando a existir o Crime de Violência Doméstica (art.º 152.º do Código Penal), para que não seja confundido com ofensas à integridade física e mesmo com o crime de maus tratos.
O crime de violência doméstica não abrange só as situações de violência na conjugalidade, entre marido e mulher ou unidos de facto, abrange as situações de menores e idosos, independentemente do sexo.
Assiste-se hoje, embora duma forma um tanto ou quanto dissimulada, à introdução da ideia de que a violência contra as mulheres está a diminuir e que a violência contra os homens começa a assumir importância. Não negando que existem situações de violência contra os homens, é preciso ser claro nesta matéria. Nem os números são significativos, nem sequer a base que leva à violência é a mesma.
Não desvalorizando todos os tipos de violência doméstica, a violência dos homens sobre as mulheres no contexto doméstico assume centralidade e é o pólo que potencia e justifica outras violências, nomeadamente contra crianças e idosos.
A violência na conjugalidade continua a ser extremamente preocupante e mais argumentos não houvesse, e há, os homicídios conjugais aí estão para o demonstrar.
esquerda.net
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