Durante 28 anos, de 1961 a 1989, a população de Berlim, ex-capital do Reich alemão, com mais de três milhões de pessoas, padeceu uma experiência ímpar na história moderna: viu a cidade ser dividida por um imenso muro. Situação de verdadeira esquizofrenia geopolítica que cortou-a em duas partes, cada uma delas governada por regimes politicos ideologicamente inimigos. Abominação provocada pela guerra fria, a grosseira parede foi durante aqueles anos todos o símbolo da rivalidade entre Leste e Oeste, e, também, um atestado do fracasso do socialismo real em manter-se como um sistema atraente para a maioria da população alemã. Na manhã bem cedo do dia 13 de agosto de 1961, a população de Berlim, próxima à linha que separava a cidade em duas partes, foi despertada por barulhos estranhos, exagerados. Ao abrirem suas janelas, depararam-se com um inusitado movimento nas ruas a sua frente. Vários Vopos, os milicianos da RDA (República Democrática da Alemanha), a Alemanha comunista, com seus uniformes verde-ruço, acompanhados por patrulhas armadas, estendiam de um poste a outro um interminável arame farpado que alongou-se, nos meses seguintes, por 37 quilômetros adentro da zona residencial da cidade. Enquanto isso, atrás deles, trabalhadores desembarcavam dos caminhões descarregando tijolos, blocos de concreto e sacos de cimento. Ao tempo em que algum deles feriam o duro solo com picaretas e britadeiras, outros começavam a preparar a argamassa. Assim, do nada, começou a brotar um muro, o pavoroso Mauer, como o chamavam os alemães. Berlim fora conquistada pelo Exército Vermelho em maio de 1945. De comum acordo, acertado pelo tratado de Yalta e confirmado pelo de Potsdam, entre 1944-45, não importando quem colocasse a bota ou a lagarta do tanque por primeiro na capital do III Reich, comprometia-se a dividi-la com os demais aliados. Desta maneira, apesar dos soviéticos tomarem antes a cidade, e também um expressivo território ao seu redor, tiveram que ceder o lado ocidental dela para os três outros membros da Grande Aliança, vitoriosa em 1945. Assim Berlim viu-se administrada, a partir de 8 de maio de 1945, em quatro setores: o russo, majoritário, o americano, o inglês e o francês. Com o azedar da relação entre os vencedores, em 1948 as quatro zonas reduziram-se a duas: a soviética e a ocidental. Em seguida, Stalin decidiu-se por um bloqueio total contra a cidade em represália ao Plano Marshall, que visava promover o reerguimento econômico da Europa destroçada pela guerra. Todas as estradas de rodagem e de ferro que ligavam Berlim com a Alemanha Ocidental foram então fechadas pelos soviéticos, na tentativa de fazer com que os aliados ocidentais desistissem da sua parte na cidade. Ou saíam ou os berlinenses morreriam de fome e frio.
Com a primeira linha de pedra se estendendo pela cidade, Krushev, então o chefe de Estado da URSS, mandava às favas a imagem do socialismo no restante do mundo. O paredão viera para ficar. Era uma monstruosidade arquitetônica que denunciava a estética kitsch, cinzenta, burra e tosca, do comunismo soviético, ao tempo em que expunha a absoluta insensibilidade das suas autoridades maiores. Quando ele ficou pronto, seu cinturão externo, envolvendo completamente a cidade, media 155 quilômetros, enquanto que o interno atingiu a 43 quilômetros: 37 deles na área residencial. Medindo em média 3,6 m, instalaram nele 302 torres de observação e 20 bunkers, de onde os soldados atiravam em quem se arriscasse a trespassá-lo. Ao longo de quase trinta anos, os Vopos mataram 192 pessoas e feriam outras 200 que tentaram fugir através dele, além de deterem outras 3.200 suspeitas de querer evadirem-se. Em retrospecto, o muro, além de ser um desastre ideológico, a encarnação do fracasso do socialismo real, resultou de um previsível processo de isolamento, seguido de enclausuramento dos alemães orientais, que já se arrastava desde 1952: ano em que a Zonengrenze, a fronteira entre as duas Alemanhas (a Federal, pró-ocidental, com sede em Bonn, e a comunista, pró-soviética, com sede em Berlim), foi definitivamente fechada. Dali em diante, os soviéticos só permitiram o trânsito de um lado para o outro por alguns locais selecionados da cidade de Berlim. Em seguida ao esmagamento do levante dos trabalhadores de Berlim oriental contra a ocupação russa, ocorrida em 17 de junho de 1953, foi exigida dos ocidentais um passe especial para poderem circular do lado oriental. Em 1957, o cerceamento dos westi, dos alemães orientais, ampliou-se com a adoção de severas punições, que chegavam a condenações de até três anos de cadeia para quem tentasse deixar a lado comunista sem permissão.
Essa sucessão de restrições, que culminaram no erguimento do medonho paredão antifuga, é que alimentaram a impressão de que os alemães orientais, além de terem a desdita de terem sido governados, desde 1933 até 1953, por duas das mais atrozes tiranias do século - a de Hitler e a de Stalin -, experiência sem igual no século, continuavam a ser os únicos punidos pela derrota de 1945. Porém, Walter Ulbrich, o líder comunista da RDA, afiançou a construção dizendo-a necessária para proteger o seu estado proletário de uma possível "agressão fascista", mesmo sabendo que os fossos antiveículos, que se estenderam por 105,5 quilômetros ao redor da cidade, estavam dispostos a evitar a evasão do lado Leste e não o contrário
O objetivo era deter o constante fluxo de gente para o lado ocidental, migração que fizera com que, entre 1949 e 1961, bem mais de 2,6 milhões de alemães orientais escapassem para a República Federal. De certa forma, isto se explica não só pela diferença dos regimes, como também pelo fato de ter havido uma extraordinária recuperação econômica do lado ocidental: o Wirtschaftwunde, o milagre econômico dos anos 50/60. Afinal era naquela parte do país que os grandes complexos industrias do Ruhr, com suas minas, suas forjas, seu aço, e seus trabalhadores especializados, estavam. Desde que as potências ocidentais, devido a crescente guerra fria, decidiram em 1948 não mais punir a Alemanha, cessando a desmontagem e o translado das suas fábricas, removidas então a título de indenização de guerra, o lado ocidental galopou em direção à prosperidade.
A outra parte, a oriental, não só estava ocupada pela URSS, que sangrara horrivelmente na luta contra o nazismo, como se viu espoliada das poucas instalações fabris que lá restaram depois da guerra. Apesar do repúdio geral à tese da pastorização da Alemanha, defendida certa vez por Hans Morgenthau, o conselheiro de F. D. Roosevelt - que pregava como a melhor política do após-guerra converter os alemães a mansos criadores de ovelhas e plantadores de repolhos -, foi do lado soviético onde isso foi de fato quase levado a efeito nos anos que se seguiram o pós-guerra. Pelo menos até 1961.
O erguimento do longo muro, traçado cubista da guerra fria, que grosseiramente separou a zona soviética da zona aliada ocidental, também fazia parte de um conjunto de provocações assumidas por Nikita Krushev no seu enfrentamento com o jovem presidente John Kennedy - uma espécie de teste de nervos para medir o pulso da liderança norte-americana recém-empossada -, jogo que culminou, no ano seguinte, em outubro de 1962, na desastrada e perigosíssima crise dos mísseis em Cuba, que quase levou o mundo à Terceira Guerra Mundial. Quanto à sensação de viver-se assim encarcerado, por anos a fio, numa enorme cidade, tornada o maior campo de presos do mundo, nada melhor do que os versos de Uwe Kolbe, do seu Hineinberon de 1980, quando então ele ainda era um jovem poeta que, empinando-se do alto do muro, procurava olhar para bem distante, vendo no horizonte, ao longe, as terras exuberantes em meio à planícies com belas árvores vermelhas enquanto cabia a ele e os seus espremerem-se num reduzido torrão verde, com árvores negras em meio a paisagem de arame farpado, onde o vento era cruel, duro, só tendo os pássaros como amigos.
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