Em que pensará Ana João, com sete meses de vida, quando faz esta expressão? Estudos científicos recentes revelam que o mundo privado de uma criança durante o primeiro ano é bem mais complexo do que se suspeitava.
Era uma manhã de chuva e só faltava mesmo vestir-lhe a capa. Cláudia sentou Caetana, de oito meses, na cama e foi buscar o agasalho à gaveta. Mal viu a capa, a bebé atirou com decisão o corpo para trás. Cláudia aproximou-se da filha e olhou para ela. "O que a Caetana estava a pensar naquele momento era: ‘Ai queres vestir-me isso? Então vê lá se consegues, agora que estou deitadinha. Desenrasca-te!" Não é só a mãe que vê atrás daqueles olhos como berlindes alguma forma de pensamento não articulado e não dependente da linguagem. A ciência também. Cada vez mais.
Tinham oito meses – e provavelmente também não gostavam que lhes esticassem e encolhessem os braços para os vestirem – os bebés que se mostraram capazes de compreender noções de probabilidade, no contexto de uma experiência realizada na Universidade da Columbia Britânica, no Canadá. Foi-lhes apresentada uma caixa cheia de bolas de pingue-pongue, a maioria brancas, e outras, em menor número, vermelhas. Os bebés mostraram-se muito mais interessados e durante mais tempo se alguém tirava da caixa quatro bolas vermelhas e uma branca, possível mas pouco provável, do que diante da relação inversa das cores.
O cérebro dos bebés não é uma tábua rasa. Nem sequer o dos mais pequeninos. Não foi um movimento reflexo aquele sorriso que, com apenas 15 dias, a Luana apontou à mãe, Helena. "Eu aproximei-me dela e ri-me. Depois parei. E de novo voltei a aproximar-me e a rir-me." Naquela altura Luana não conseguia distinguir a cor dos olhos ou da blusa da mãe – até aos quatro meses os bebés vêem o mundo em tons de cinzento – mas soube comunicar com ela e brindá-la com o seu primeiro sorriso intencional. Helena tem a certeza: "Eu sou muito mais do que o almoço para ela."
Com dois meses, tantos quantos os que a Luana tem agora, os bebés são capazes de reconhecer uma sequência de luzes, de maneira a antecipar a que vai acender-se de seguida. Ou seja, têm memória eficaz. Memória absolutamente físico-sensorial, sem linguagem, relacionada por exemplo com o olfacto. Luana conhece bem o cheiro da mãe – "já fiz a experiência de colocar roupa minha na cama dela. Ela acalma-se" – e é sensível ao som. "Refila quando a música de um bonequinho que comprei para ela acaba."
PERCEPÇÃO DO MUNDO
Para a música parece ter nascido, há nove meses, o Bruno. Delira quando o pai toca guitarra baixo. "Tenta aproximar-se e quer chegar com os dedinhos às cordas", conta a mãe, Raquel. Em certa ocasião, ouvindo um solo de baixo reproduzido no computador, o bebé olhou de imediato para a guitarra e ajeitou a mais perfeita expressão de espanto – como quem pensasse: ‘Então?! Era suposto o som vir dali!’
Sim, os bebés são capazes de organizar informação e tirar conclusões sobre o mundo que os rodeia. Prova – científica e nem um pouco manipulada pelo amor maternal – disso mesmo é a surpresa que revelam diante de truques de Física que ‘mexem’ por exemplo com a gravidade.
Prenda-se um objecto ao tecto usando um fio transparente de modo a parecer que fica em cima da mesa. De seguida arraste-se a mesa. Um bebé de três meses ficará deveras surpreendido por ver que o objecto continua no mesmo sítio. Esconda-se agora atrás de uma cortina um brinquedo que desaparece assim que aquela se abre. Mostre-se por fim um comboio que, através de animação digital, atravessa um muro sem o deitar abaixo. ‘Não pode ser!", disseram as expressões dos bebés que participaram em tais experiências realizadas, pela psicóloga Elizabeth Spelke, na Universidade de Harvard, nos EUA. Os resultados demonstram que uma criança de três meses tem noções de gravidade (o objecto devia cair quando a mesa é arrastada), continuidade da matéria (o boneco não devia desaparecer atrás da cortina) e solidez (o comboio devia destruir o muro quando o atravessa).
Nos últimos anos, à simples observação do comportamento aliou-se tecnologia capaz de levar os adultos a ‘espreitar’ o cérebro dos bebés em pleno funcionamento. Uma chupeta com um sensor ligado ao computador permitiu, por exemplo, avaliar a influência do pensamento e da linguagem nos primeiros seis meses de vida. Determinado o ritmo de sucção em momentos de calma, foi ‘pedido’ ao bebé que usasse a chupeta enquanto a mãe lia um texto para ele. Quando, sem qualquer inflexão, a mãe mudou de idioma, a frequência da sucção alterou-se, ou seja, o bebé tinha percebido a alteração.
O que o Bruno, de nove meses, nunca deixa passar sem resposta são as alterações na voz da mãe e do pai. "Se lhe falamos de uma maneira mais séria, ele fica sentido. Se brincamos, desata à gargalhada." E reage à incoerência, como daquela vez em que o pai estava a dar-lhe de comer e ralhou com o cão. O bebé olhou para ele e parecia querer dizer-lhe: ‘O que foi? Estou a portar-me bem. Por que é que estás zangado?’
O que também parece absolutamente claro na cabeça deste bebé é a diferença entre animado e inanimado. O Bruno não espera que os objectos se mexam mas não lhe causa surpresa o movimento dos dois cães e dois gatos que vivem lá em casa. Tem preferência pelo enorme Rafeiro Alentejano, ao qual reage com manifestações de alegria, e pelo gato ‘Óscar’ , que brinda, mal vê, com um triunfante ‘Yahhhh’ antes de tentar agarrá-lo.
O BEBÉ FILOSÓFICO
"Os estudos científicos mostram que os bebés são abertos às experiências e aprendem com facilidade. Essa capacidade implica um nível bastante elevado de consciência do que aquele, bastante limitado, que antes lhe atribuímos", escreve a psicóloga americana e professora na Universidade da Califórnia Alison Gopnik no livro, ainda não publicado em Portugal, ‘The Philisophical Baby’ (‘O Bebé Filosófico’), que compila os mais recentes estudos de neurocientistas, psicólogos e linguistas sobre a matéria.
Precisamente hoje, domingo, Ana João celebra sete meses de vida. É provável que a saúdem também na rua, quando os pais a levarem em passeio. E Ana há-de sorrir-lhes daquela maneira um tanto enfastiada que Inês, a mãe, bem conhece. "Levanta ligeiramente o lábio superior com se dissesse: ‘Vá toma lá e deixa-me em paz." Bem diferente do sorriso que dedica àqueles de quem mais gosta.
Mesmo não gostando de estar sozinha, a bebé já lida com a ausência da mãe, desde que a sinta perto. "Esta rapariga, que precisa de mim para tudo, se está a brincar com os bonecos parece autónoma", brinca Inês. O Bruno também já percebe que pode não ver a mãe mas ela anda por ali. "Ele às vezes chora a chamar-me. Digo-lhe: ‘Bruno, a mãe vai já’. Ele cala-se por alguns momentos mas se me demoro muito refila de novo", conta Raquel.
Resultado de uma abordagem científica que reduzia os bebés a ‘esponjas’ no meio de uma confusão de estímulos, as mães remetem não raro as reacções dos seus bebés para a categoria de reflexos, resistindo ao primeiro impulso de entendê-las como respostas estruturadas. "É fácil distinguir o que é reacção quase mecânica do que equivale a uma resposta baseada num pensamento estruturado. Os pais sabem-no instintivamente", contrapõe o pediatra Mário Cordeiro.
"AO EXECUTAR TAREFAS, ELES ESTRUTURAM O PENSAMENTO" (Mário Cordeiro, pediatra e autor de ‘O Grande Livro do Bebé’ e de o ‘Livro da Criança’)
- Os bebés com menos de um ano pensam?
- Pensam, raciocinam e fazem um excelente uso de todas as formas de pensamento, na gestão do dia-a-dia, criatividade, estratégias para fazer prevalecer a vontade e para fazer chegar a água ao seu moinho – a Ciência mostra que se pensa logo desde a barriga da mãe.
- Como sabemos se eles pensam e em que pensam?
- A observação das atitudes, comportamentos e respostas permite extrapolar isso. Saber no que estão a pensar é mais difícil nas primeiras semanas, mas podem adivinhar-se as áreas: fome-comida, angústia-conforto, frio-agasalho, etc. Um pouco mais tarde, o bebé já mostra claramente, de um modo objectivo, aquilo em que está a pensar.
- Como é que eles pensam, atendendo a que associamos pensamento a linguagem e eles não falam?
- Pensar não é falar. Falar é uma das muitas formas de comunicar, pensar é elaborar uma informação, um conhecimento, um sentimento, um raciocínio para gerar uma nova conclusão. E o bebé, ao executar as suas tarefas, ao brincar, sorrir, chorar... está a pensar e a estruturar-se a cada pensamento.
- Os bebés distinguem emoções, como alegria e tristeza, nos outros?
- Sim, desde a barriga da mãe – as grávidas sabem bem que, ao comer um pastel de nata, o feto dá "pulos" de contente e mexe-se muito. E os bebés a quem a mãe sorri, sorriem. Se a mãe fizer "cara feia", eles ficam parados, fazem beicinho e depois choram.
CÉREBRO SOFISTICADO
Um recém-nascido é capaz de ver e ouvir, bem como de perceber e reconhecer cheiros. Está longe de assemelhar-se a uma folha de papel em branco. Mesmo se o desenvolvimento infantil é lento e pausado, o cérebro de uma criança durante o primeiro ano de vida tem, comprovadamente, capacidades sofisticadas.
ZERO A TRÊS MESES: CONHECE O CHEIRO DA MÃE
Reconhece o cheiro e a voz da mãe. Vê com nitidez à distância que a mãe lhe fala. Tem bom olfacto. Ouve bem. Prefere desenhos a preto e branco.
QUATRO A SEIS MESES: DISTINGUE CORES E ROSTOS
Incorpora cores: azul, roxo, amarelo. Prefere os sabores doces. É fascinado pelo rosto dos que o rodeiam, no qual descobre emoções e sentimentos.
SEIS MESES: LIDA COM A AUSÊNCIA DA MÃE
Pode ficar sozinho porque percebe que o facto de não ver a mãe não significa que ela não esteja perto. Aceita a ausência desde que a ouça amiúde.
SEIS A OITO MESES: SABE QUAL É A HORA DA COMIDA
Reconhece os horários da comida e fica na expectativa. Explora o mundo com as mãos. Reconhece aqueles que identifica com os seus objectos.
OITO A DEZ MESES: RECONHECE O PRÓPRIO ROSTO
Antecipa situações. Sabe, por exemplo, que a mãe vai sair quando veste o casaco. Com dez meses distingue e reconhece o seu rosto no espelho.
NOTAS:
PERTO
Um recém-nascido é capaz de encontrar um objecto que se desloca e de segui-lo.
LONGE
O desinteresse pelo que vê ao longe pode resultar de não ter memórias e logo termo de comparação.
SONHOS
Neurobiologia prova que os bebés sonham. O sono REM, ligado ao sonho, aparece antes do fim do primeiro ano.
VOZ
Criança é especialmente sensível à voz humana. Também assim detecta angústia e inquietação.
Isabel Ramos/ cm
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