sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Catalunha não quer mais touros: a última corrida em Barcelona

A Catalunha pode ser a primeira província espanhola a banir touradas. Por causa de pressões dos defensores dos direitos dos animais - e pelo orgulho catalão de ser diferente
Um fã fotografa José Tomás, ídolo dos aficionados espanhóis, que pode ter sido dos últimos toureiros a actuar na Catalunha Eloy Alonso/Reuters 1/1 + fotogalería .Aqui na Catalunha, esta região de Espanha de espírito persistentemente separatista, há anos que a tourada está em apuros, e a economia não tem ajudado. Os preços dos bilhetes são semelhantes aos da ópera. A produção das corridas de touros é dispendiosa. Este ano, o número de touradas desceu vertiginosamente na Catalunha e em toda a Espanha.

Mas José Tomás ainda atrai enormes multidões. Para os aficionados, ele é a última esperança das touradas. Discreto, este matador de uma intrepidez e calma fora de série, envolto em história e mistério, reformou-se em 2002, aos 27 anos, no auge da sua carreira. Volvidos cinco anos, eis que regressa inesperadamente a Barcelona, à Plaza Monumental - a bela e antiga praça de touros da cidade, toda construída em tijolo e com 19 mil lugares. Foi a primeira tourada dos últimos 20 anos a conseguir esgotar a lotação.

No início deste mês, regressou para mais uma ocasião especial: a corrida que será, possivelmente, a última a realizar-se na Catalunha.

Ao longo das últimas décadas, o interesse cada vez menor que os catalães mais jovens manifestam pelos touros, juntamente com a pressão dos defensores dos direitos dos animais e dos nacionalistas catalães, têm prejudicado a tourada na Catalunha. As praças de touros das quatro províncias da região têm vindo a fechar; a de Barcelona é a única que se mantém activa.

Agora, um referendo apresentado ao parlamento catalão, poderá acabar de vez com as touradas. Há muito que se fala, nesta zona de Espanha, sobre a proibição total da tourada. Até mesmo os aficionados já consideram plausível que a proibição seja aprovada.

Assim, a corrida - programa com três matadores e seis touros - foi mais do que apenas a última da época. Foi, possivelmente, o fim de uma era. E José Tomás surgiu no que quase pareceu ser uma derradeira tentativa de usar o seu poder de atracção e a sua mestria para ajudar os que se opõem à proibição da tourada.

Mestria, isto é, para os aficionados. Há a arte do ritual, ancestral e colorida, com as suas sequências de movimentos, firmemente estabelecida. No entanto, e porque os touros diferem, é uma arte sempre diferente, envolvendo uma certa graciosidade balética dos matadores, que são avaliados em especial pela forma como conseguem, ou não, fazer os touros parecerem igualmente graciosos. A tourada, dizem os fãs, é um património cultural espanhol. A Europa pode desejar juntar-se em torno de interesses sociais e económicos comuns, mas as culturas nacionais devem ser respeitadas e a tourada representa diversidade cultural.

Os opositores, como é óbvio, vêem a questão por outros prisma. Na corrida em Barcelona, uma dezena de defensores de direitos dos animais juntaram-se no exterior da praça de touros empunhando bem alto cartazes artesanais salpicados de tinta vermelha.

Os touros são franquistas?
Ao fundo da rua, no La Gran Pena, um bar frequentado por aficionados, Isabel Bardon, a proprietária, equilibra uma bandeja cheia de cervejas, enquanto vai navegando por entre um mar de patronos, alguns deles esticando o pescoço para ver o matador retirado, que sorria para os fotógrafos, posando ao lado de uns homens mais velhos que fumavam grandes charutos. "Para mim ia ser muito mau", diz Isabel Bardon, especulando sobre a possibilidade da proibição ser aprovada.

Poderá ser, quem sabe. O que é certo é que durante os primeiros anos do século passado, Barcelona tinha nada mais nada menos do que três praças de touros. Era a Meca dos aficionados. Entre a década de 1920 e a de 1960, realizaram-se aqui mais corridas do que em qualquer outra cidade espanhola.

Mas os nacionalistas catalães começaram a disseminar a ideia de que as touradas tinham sido uma imposição do regime fascista de Franco sobre a Catalunha, que as promovera, tal como ao flamenco, como um símbolo patriótico. A oposição às touradas tornou-se uma forma diferente de manifestação de separatismo. Os defensores dos direitos dos animais entraram em cena e deram força às reivindicações dos nacionalistas.

A questão mantém-se, acima de tudo, política. Isso é claro pelo que acontece do lado de lá da fronteira, na região catalã do Sul de França, onde as touradas são acarinhadas com o mesmo fervor com que são contestadas na Catalunha, e precisamente pela mesma razão separatista: no caso deles, por serem proibidas pelo governo de Paris.

"Numa altura em que a Europa se está a tornar maior e mais multicultural, Barcelona está a ficar mais pequena e mais catalã." É assim que Robert Elms, escritor britânico de literatura de viagens, vê a situação.

Veio ver José Tomás e comentou, antes da corrida, de que forma esta cidade escura mas mágica que em tempos conhecera, se tornou num fulgurante centro de moda que, não obstante, parece cada vez mais virado sobre si próprio.

"É vaidade", diz. "É a única palavra. E a vaidade reflecte uma cultura insegura." A possível proibição das touradas, acrescenta, assemelha-se a uma lei que exige que as crianças em idade escolar recebam a maior parte da sua formação em catalão e não em castelhano.

Paco March acena a cabeça quando é feita essa associação. Natural de Barcelona, é o autor da coluna de tauromaquia do "La Vanguardia", segundo jornal de maior tiragem da cidade. Conta que a filha, de 15 anos, é considerada fascista pelos colegas de turma, simplesmente porque tem a fotografia de um toureiro colada num caderno.

"Fico enfurecido ao ver que, em nome da democracia, uma minoria de opositores à tourada possam apagar os direitos de outra minoria, a dos aficionados, que apreciam aquilo que, neste país, é um espectáculo legal que expressa verdades profundas sobre a vida e a morte levadas ao extremo."

Os aficionados falam assim. Sublinham que as touradas tornam a morte uma coisa simples e visível numa época em que a maioria das pessoas prefere manter distância dessa realidade.

Algumas destas mesmas pessoas pactuam com a criação e abate de animais ao comer a sua carne, mas condenam as touradas. Ou então vão ver touradas a Portugal, onde os touros não são mortos na arena. São mortos depois, onde ninguém é obrigado a ver.

Para os matadores espanhóis, isso é extremamente injusto, porque lhes nega o seu dever para com os touros com os quais lutaram, poupando-os à particular vulnerabilidade que é suposto sentirem nesse momento da tourada.

Matar a própria cultura
Independentemente de aceitarmos este argumento como válido, seria um erro partirmos do princípio de que a proibição da tourada na Catalunha será um prenúncio para o resto de Espanha.

Apesar de três quartos dos espanhóis afirmarem não ter interesse por touradas, jamais admitirão que estrangeiros venham dizer--lhes o que podem ou não podem fazer. É por esta razão que a Espanha tem vindo a resistir, sistematicamente, às pressões do Parlamento Europeu e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos para que seja posto fim às touradas. O que poderá acabar com elas - se é que algumas vez isso vai acontecer - será a indiferença do público, a concorrência de outro tipo de espectáculos mais baratos, como o futebol e os jogos de computador, e a morte de uma geração de aficionados.

E assim, à luz pálida de uma quente tarde de início de Outono, entre explosões de flashes e gritos de "Torero!" e "Olé!" José Tomás apareceu em Barcelona, pelo menos uma última vez, como porta-estandarte de uma arte em apuros. Orquestrou a sua habitual série de arrepiantes passes com os touros. Como Roger Federer, faz com que cada gesto pareça incrivelmente lento e elegante.

"Esta artística corrida de touros com que terminou a temporada pode muito bem ter sido a última a realizar-se nesta praça", lamenta na manhã seguinte o "El País". "Se os políticos proibirem as touradas em Barcelona, vai ser uma pena."

Paco March, o cronista de tourada do "La Vanguardia", põe a questão de uma forma mais drástica: "Queremos diferenciar-nos do resto de Espanha acabando com a morte dos touros. Mas aquilo que estamos a fazer é a matar a nossa própria cultura."

Exclusivo i//The New York Times

Veja aqui, parte da lida de José Tomás, provavelmente a última na Catalunha:

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