sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Existência de cinco sexos é aceite mas não é consensual



O caso da atleta Caster Semenya, cuja condição sexual está a ser estudada, relançou a discussão sobre a dicotomia homem/mulher mas, afinal, há quem defenda que os géneros sexuais não são dois mas três, cinco ou até mais.
"Existem várias teorias mas a mais marcante e a que mais se aproxima da realidade prática e clínica é a que contrapõe aos dois géneros clássicos - masculino e feminino - a existência de mais três, o pseudo-hermafroditismo masculino, o pseudo-hermafroditismo feminino e o hermafroditismo verdadeiro, num total de cinco", declarou o urologista Nuno Monteiro Pereira.
O também director da Clínica do Homem e da Mulher, em Lisboa, explicou as diferenças de forma simplificada: "Os pseudo-hermafroditas masculinos têm sempre testículos mas o aspecto do corpo pode não ser masculino e os pseudo-hermafroditas femininos têm sempre ovários, embora o seu corpo possa não parecer feminino. Quanto aos hermafrodistas verdadeiros possuem, em simultâneo, ovários e testículos".
Portanto, "a classificação dos cinco sexos baseia-se, claramente, na presença ou ausência de testículos", ainda que a gónada primordial seja sempre a feminina - "se houver cromossomas Y, ela transforma-se em testículo, se não houver, será sempre ovário", esclareceu.
Ainda segundo Nuno Monteiro Pereira, na evolução das espécies, o sexo feminino foi o primeiro a aparecer, "o masculino só surgiu cerca de meio milhão de anos depois".
Ou seja, "Eva antecedeu Adão e a prova é que, ainda hoje, temos espécies onde só existem seres femininos mas não temos qualquer espécie apenas com seres masculinos", exemplificou.
Em relação à atleta sul-africana que correu nos mundiais de atletismo de Berlim, Nuno Pereira acredita que se trata de uma situação de pseudo-hermafroditismo masculino, possivelmente devido a uma deficiência enzimática.
"Num corpo ambíguo - em que a ausência de um pénis foi o factor decisivo que marcou, à nascença, a classificação como 'menina' e não 'menino' - a presença escondida de testículos interiores justifica a elevada produção de testosterona, factor que permite elevadas performances atléticas", esclareceu.
Segundo o director do mestrado transdisciplinar de Sexologia na Universidade Lusófona, "os hermafroditas verdadeiros são muito raros e têm, quase sempre, um aspecto masculino, embora se lhes desenvolvam as glândulas mamárias na adolescência", sendo geralmente isso que chama a atenção, "pois a pessoa tem pénis e nada levava a desconfiar da sua condição". "Só conheço a existência, descrita, de um caso de hermafroditismo verdadeiro em Portugal, embora talvez haja um segundo, do princípio do século XX, que carece de confirmação", revelou o urologista.
Nuno Monteiro Pereira alertou ainda que, nesta matéria, é mais correcto falar de intersexo - designação que refere a coexistência, no mesmo indivíduo, de elementos anatómicos característicos dos sexos masculino e feminino - do que de ambiguidade sexual, "pois há muitas situações em que a ambiguidade não se verifica".
"É o caso do pseudo-hermafroditismo masculino por insensibilidade androgénica - conhecido por síndrome dos testículos feminizantes - em que não há receptores para a [hormona] dihidrotestosterona, pelo que existe uma mulher com um corpo muito feminino mas com testículos e cromossomas masculinos", exemplificou.
A hipótese dos cinco sexos - avançada no estudo "The Five Sexes (Os Cinco Sexos)", publicado em 1993 na revista The Sciences pela norte-americana Anne Fausto-Sterling, docente de Biologia e Estudos de Género na Universidade de Brown, em Rhode Island - não gera, porém, consenso.
Para o psiquiatra e sexólogo Francisco Allen Gomes, não existem cinco sexos, nem sequer três, outra das hipóteses colocadas.
"Não há três sexos, o terceiro sexo é uma hipótese literária com origem no "Middlesex", do norte-americano Jeffrey Eugenides, que ganhou um prémio de romance, não de investigação", clarificou logo no início da entrevista, referindo-se ao facto de o livro - cuja versão portuguesa, editada em 2004 pela Dom Quixote, mantém o título original - ter sido galardoado com um Prémio Pulitzer na categoria de ficção.
Para o ex-chefe de serviço de Psiquiatria dos Hospitais da Universidade de Coimbra, "não podemos falar num terceiro sexo, porque esse teria de ter características que não tem, nem em quatro, nem em cinco" mas antes em "estados intersexos ou perturbações do desenvolvimento sexual, que têm várias características, diferentes umas das outras, e apresentam uma grande variabilidade de expressão".
O autor de "Paixão, Amor e Sexo" defende que "não se pode dizer com segurança que as manifestações sejam meramente biológicas pois há também um contexto social envolvente", cuja influência pode ser determinante.
"Podemos ter uma pessoa com o cromossoma 46, XX, com uma hiperprodução de testosterona na altura do nascimento e um aspecto feminino virilizado que segue uma via de desenvolvimento masculino e ter outra pessoa exactamente na mesma situação que segue a via de desenvolvimento feminino", afirmou.
"E uma pessoa pode ser XY e ter uma identidade feminina. Por isso é que não é fácil estar a fazer dicotomias. A pessoa é, antes de mais, aquilo que se sente em termos de género", realçou o presidente da assembleia-geral da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica.
Assim, "o que pode ser dito com clareza é que existe um sexo feminino, um sexo masculino e, depois, estados intersexuais com grandes variações e com consequências muito diferentes de pessoa para pessoa".
Francisco Allen Gomes e Nuno Monteiro Pereira concordam, porém, num aspecto - para ambos está excluída a existência de um "sexo nulo".
Para Nuno Pereira, "um chamado 'sexo zero', em rigor, não existe" e para Allen Gomes "o sexo nulo é uma coisa sem cabimento, pois não existem pessoas assexuadas".
O antigo responsável pela consulta de Sexologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra reforçou mesmo: "As pessoas podem não ter actividade sexual mas têm uma identidade sexual. Neste campo, não há pessoas neutras".
ionline

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