Um livro sobre música clássica que se transformou em fenómeno literário? Eis "O Resto É Ruído", de Alex Ross. Uma história da música contemporânea que é também, em 575 páginas empolgantes, a história das tensões políticas e culturais do século XX
Alex Ross, 41 anos, crítico musical da "New Yorker" desde 1996, começou a desenvolver aquilo que seria "O Resto É Ruído" há mais de dez anos. Desde os tempos da universidade, em Harvard, Massachussets, que o fascinava a música do século XX: do fim do romantismo às experiências revolucionárias de Arnold Schoenberg ou Igor Stravinsky, do misterioso Shostakovich, na União Soviética, ao intercâmbio entre música clássica e popular nos Estados Unidos, com Duke Ellington ou George Gershwin, passando pelas vanguardas engajadas da República de Weimar e chegando às americanas, com outro engajamento, de John Cage, Terry Riley ou Steve Reich. O que aconteceu quando completou o livro revelou-se uma surpresa.
Editado em 2008 nos Estados Unidos, acabaria destacado nas listas de melhores livros do ano do "New York Times", da "Newsweek", da "The Economist" ou da "Time" - e na "shortlist" de finalistas do Pulitzer. "O Resto É Ruído" não é apenas a história da música clássica do século XX. Nele acompanhamos também a história política e cultural do período e vemos as figuras que atravessam a obra reveladas, meticulosamente, em toda a sua dimensão humana - para o bem e para o mal. Talvez por isso o livro, longo de 575 páginas, se tenha expandido bem para além do público conhecedor e interessado na música erudita.
"Quis que o livro tivesse o mesmo estilo de escrita que utilizo na 'New Yorker'", disse-nos Alex Ross desde Nova Iorque. "Também é minha missão como crítico cativar novas audiências para esta música". Agora que "O Resto É Ruído" é editado em Portugal pela Casa das Letras, agora que já o lemos, podemos dizer: missão cumprida.
O livro tem como eixo o intercâmbio entre a música clássica e a cultura popular, acelerado definitivamente no século XX. Retrata o momento em que os grandes compositores clássicos passaram a concorrer com celebridades de outras áreas musicais e se enquadraram nesse novo mundo.
No início do século XX, os compositores eram celebridades. Puccini ou Richard Strauss eram falados nos jornais sempre que visitavam qualquer cidade. Porém, à medida que o século avança, assiste-se a um declínio da sua posição social. Os compositores começaram a mover-se para as margens, enquanto as estrelas pop ascendiam e atingiam o estatuto que era anteriormente deles. Infelizmente, na cultura popular, a música clássica tem a reputação de ter acabado - há a ideia que a sua grande era dourada terminou no século XIX. Quis escrever o livro também para negar essa ideia e falar da extraordinária riqueza da música do século XX. Porque, afinal, a música clássica ganhou novas audiências em todo o mundo, espalhando-se por lugares onde não existia cem anos antes. Tem encontrado grandes audiências: basta pensar em Prokofiev, Shostakovich, Aaron Copland, John Adams ou Philip Glass, que é quase uma estrela pop. Dizer que a música clássica foi confinada às margens e que a música popular é dominante não passa de um lugar-comum.
Visitou alguns dos compositores que aborda, como John Adams. Procurou os que já não estão vivos através dos locais onde viveram?
Fi-lo sempre que tive oportunidade. É uma forma de saber o que são e como se sentem esses lugares. Britten tinha Aldeburgh [pequena cidade costeira inglesa, no distrito de Suffolk]. Em Viena, vi onde viveram Mahler e Schoenberg. Em Graz, fui à "pera onde se deu a representação de "Salomé" [de Richard Strauss, descrita no primeiro capítulo]. Vejo uma justaposição muito premente entre a música e os diferentes lugares de onde emerge. Não sendo nada de científico, sinto que existe uma relação entre a textura de alguns trabalhos de Sibelius e a paisagem que o rodeava [na casa Ainola, junto ao lago Tuusula, Finlândia]. No caso de Viena, isso não está relacionado com a sua geografia específica, mas com o facto de ser uma cidade com um sentido de cultura. Ver os edifícios do período dá-nos uma grande perspectiva do que seria o ambiente onde nasceu aquela música. Interessa-me muito conhecer as biografias, as psicologias, os contextos culturais em que trabalharam os compositores - que autores liam, que pintura andavam a ver. Mas claro que a relação disso com a música é muito misteriosa.
Será possível apreciar uma peça musical marcadamente política para além da ideologia? Ouvir "Leninegrado", de Shostakovich, sem o peso estalinista, ou as obras que Richard Strauss compôs, com o patrocínio do nazismo, sem a sombra de Hitler?
É discutível afirmar que a música é independente da História, especialmente no século XX, em que a política invadiu todas as dimensões humanas. Mas em Shostakovich, por exemplo, o contexto político está muito presente no início e atenua-se à medida que a sua música começa a desabrochar. É um compositor tão arrebatador que acabamos arrastados para o mistério da sua personalidade musical. Será interessante ver como se desenvolverá a reputação de Shostakovich. Perdurará o período soviético estalinista na memória viva ou chegará uma altura em que esse será apenas um facto histórico distante? Suspeito que os seus trabalhos manterão o mesmo efeito sobre o público por muito tempo.
Identifica algum acontecimento específico que divida o século XX, musicalmente? A rádio, a reprodução eléctrica de música, a II Guerra Mundial?
Para fazer essa divisão temos que olhar para os eventos que aconteceram ente 1909 e 1913, com Schoenberg a apresentar as suas primeiras peças musicalmente revolucionárias e Stravinski a "Sagração da Primavera". Esses dois acontecimentos transformaram a música por completo. Em termos históricos, 1945 é um ano incrivelmente importante. Representa o grande colapso do sistema de valores associados à cultura europeia do século XIX. Os compositores que vieram depois sentiram necessidade de pensar o mundo de outra forma, mas o público continuou a olhar para a era anterior. Essa tensão ainda não está resolvida. Há muita nostalgia pela cultura do início do século XIX e há quem seja incapaz de aceitar música que opere de uma forma diferente. Mas acredito que podemos amar Wagner e Puccini e também Stockhausen e Steve Reich, da mesma forma que podemos ver Rembrandt num museu e, depois, Matthew Barney numa galeria moderna. Um público cultural moderno consegue fazer este tipo de transições na maioria das artes. Na música, porém, as pessoas tendem a escolher um ou outro lado. A verdade é que procuram um certo conforto, também porque existiram muitas alterações no vocabulário musical no século XX. Se forem a uma galeria ou se pegarem num romance contemporâneo estão bastante preparadas para ser surpreendidas, mas quando vão à sala de concertos querem ser tranquilizadas e transportadas para um mundo de beleza pura. Quando um compositor as confronta com algo mais desafiante, a reacção é negativa.
Apesar de se concentrar na Europa em vários momentos e de abordar ligeiramente outros continentes no final, "O Resto É Ruído" foca muito os EUA e a evolução que ali se viveu. Vê-os como o palco essencial para compreender a evolução musical do século?
[Com os músicos e compositores europeus em fuga das duas guerras mundiais] a música clássica chega à América e encontra a cultura popular americana, as tecnologias de gravação e a rádio. Nesse momento, os EUA transformam-se numa metáfora do mundo contemporâneo. O que ali aconteceu à música de tradição europeia é um microcosmos do que aconteceu em todo o lado. Para o bem e para o mal, a cultura popular e aquelas tecnologias são universais.
Um dos capítulos descreve as tensões que surgiram quando alguns compositores, nos anos 20, se apropriaram de músicas populares em contexto erudito. Edgar Varèse descrevia o jazz como "produto negro, explorado pelos judeus". Scott Joplin, ao ouvir peças de George Gershwin e Irving Berlin, acusava: "Roubaram a nossa música". Está encerrada a discussão sobre a propriedade da música?
É um tema controverso. Existem casos de aprendizagem e apropriação e casos que são realmente de exploração. Nos anos 20, os compositores brancos americanos viam o jazz como música folk, como uma expressão rude, nativa, que poderiam transpor para linguagem clássica e transformar em arte. O problema é que os pioneiros do jazz eram artistas. Louis Armstrong e Duke Ellington, mais tarde Miles Davis, estavam a apropriar outras linguagens, a explorar e a desenvolver as suas ideias. Ou seja, o processo de tornar a música arte deixou de competir em exclusivo a um compositor clássico. Foi um choque a descoberta de que se podia ter grande arte musical fora da arena clássica. Aliás, ainda há pessoas na música clássica que o negam. Mas existe música clássica que serve apenas para entreter o máximo de pessoas possível, no máximo de salas possível, e que não é de todo o que definiríamos como arte. Por outro lado, no universo popular, existem um Cecil Taylor, no free jazz, ou uns Sonic Youth, no rock, que não são artistas de massas. Actualmente, todas as expressões musicais têm a sua cultura de entretenimento e a sua cultura artística, underground.
Vê esses intercâmbios frutificarem?
Em Nova Iorque, vemos jazz, rock e música clássica, vemos músicos de cada expressão a colaborarem entre si e parecem falar uma mesma linguagem. A intersecção de géneros está muito elaborada. A Bjork ou os Radiohead têm uma grande consciência da música clássica do século XIX. Conhecem o repertório bastante bem e reagem a ele de uma forma muito interessante. São apenas dois exemplos.
Não partilha portanto a ideia de que tudo já foi inventado.
Não. A vanguarda está bem e recomenda-se, experimentando novas tecnologias e novas técnicas. O que sinto é que vingou uma ideologia muito apelativa, principalmente depois da II Guerra Mundial, que professava que a única música que interessava era a que representasse um avanço. Se nos agarrarmos de forma dogmática a essa ideia, a música transforma-se em técnica, negligenciando a personalidade e a voz autoral. É a força da linguagem do indivíduo que deve manipular a técnica.
E sobreviverá a força dessa linguagem, naquilo que tem de genial, à cultura de massas? "West Side Story", musical de ruptura quando estreado e hoje um standard, retém o seu poder?
Sim, sem dúvida. A "Ode à Alegria" de Beethoven foi aproveitada na televisão, na publicidade ou no cinema e, contudo, basta ir a um concerto de Beethoven e vê-la interpretada de forma poderosa e apaixonada para todo o maravilhamento regressar. Desaparece a familiaridade e aquela música volta a ser estranha e surpreendente. Mas isso é responsabilidade do maestro e dos músicos.
É ao vivo que a música resiste à banalização?
A cultura de massas tem o poder de exaurir a música. Pode causar alguns estragos, mas uma grande performance da "Ode à Alegria" devolve-nos a sua grandeza. Por isso é que a experiência ao vivo é tão relevante num mundo onde tudo é mediado electronicamente. A tecnologia é um grande método de propaganda, permitindo o encontro de músicos e compositores como nunca antes. Mas o som a ressoar num espaço, com o público a partilhar a mesma experiência, tem uma qualidade misteriosa. Funciona de uma forma irrepetível, renovada a cada nova actuação. E é poderosíssimo a um nível quase espiritual, o que é um bem cada vez mais raro na sociedade actual.
De Strauss aos Public Enemy
A dimensão pode assustar mas basta um par de páginas para perder o medo. Aliás, um par de páginas e não há forma de escapar à narrativa absorvente de "O Resto É Ruído". É realmente disso que se trata: uma narrativa, no sentido literário, através da qual atravessamos a história da música do século XX.
Conjugando ensaio, biografia e análise crítica, e equilibrando com mestria essas três dimensões, a história arranca em Graz, em 1906, no momento em que Richard Strauss se prepara para apresentar e dirigir a ópera "Salomé". Ross faz do momento um magnífico fresco de época, com a sensação de acontecimento a ganhar forma com as notícias dos jornais e a entrada em cena de Puccini, Schoenberg, um jovem Hitler e os jovens entusiastas da vanguarda straussiana.
Quando, algumas páginas depois, somos transportados das ruas de Graz para o coração da própria "Salomé", ou seja, do contexto para a música ela mesma, o tom está dado. Vogamos entre um e a outra sem que o ritmo se perca: nada há aqui de críptico ou de condescendente. A forma vívida, de uma impecável precisão jornalística, repleta de apartes esclarecedores, como Ross nos conduz pelos corredores da história e pelo íntimo dos seus protagonistas torna ainda mais rica a matéria que tem em mãos.
Quando começamos, a velha Viena prepara-se para ser chocada pela nova Viena, representada por Richard Strauss. Quando terminamos, já Alex Ross, nada dado a hierarquias estéreis, declarou "Welcome to Terrordrome", dos Public Enemy, como "a 'Sagração da Primavera' da América negra", e já John Adams se quedou perante uma pauta incompleta, enfrentando o silêncio de tudo o que falta compor.
No século XX o mundo atravessou duas grandes guerras, inventaram-se a rádio, o cinema, a televisão e a electrónica. Houve o jazz e o rock'n'roll, o método dodecafónico de Schoenberg, o vanguardismo de John Cage e Ligeti e um Jean Sibelius descobrindo toda a beleza do mundo nos gansos que sobrevoam o céu finlandês.
Tudo isso e todos estes estão em "O Resto É Ruído".
ipslon
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