terça-feira, 24 de março de 2009

Dez anos após os ataques da NATO


A 24 de Março de 1999 a Aliança Atlântica bombardeou a Sérvia para acabar com os ataques aos albaneses no Kosovo. Um facto que desperta muitas memórias dolorosa.


"Porque é que a NATO atacou pela primeira vez sem autorização do Conselho de Segurança da ONU? Porque é que lhe chamaram campanha humanitária? Porque é que discordamos entre nós, sérvios, sobre os bombardeamentos?" Entre estas perguntas da revista Vreme e outros tantos porquês nas margens de uma Belgrado que a câmara municipal auto-intitula "a cidade do futuro no Sul da Europa", ecoa um ponto de interrogação mais simples, mas mais ruidoso do que as sirenes que às 19.45 de hoje vão voltar a soar, em coro paradoxal com os sinos das igrejas ortodoxas, assinalando a primeira bomba que, na primavera de há dez anos, caiu dos céus da NATO na operação Anjo Piedoso: "Porque é que eu perdi os meus diários?" Ivana tinha 21 anos e vivia então em Pristina, o epicentro dos porquês: "Porquê eu? De repente, estás num filme da II Guerra Mundial e não acreditas. A vida pode ser tão anormal quanto inacreditável. Mas sobrevives e lembras-te de cada segundo em câmara lenta". Há alguns anos que ela não dizia as palavras que magoam os lábios. Como Aviano, a base italiana de onde o pai não acreditava que os primeiros aviões tinham acabado de levantar. A memória de Ivana é um caleidoscópio de sons, cheiros e imagens dos porquês que só as vítimas têm o direito de gritar: "quando um avião voa mais próximo do solo, ainda hoje, sinto um instinto de ansiedade incontrolável. Mas quando bombardearam a estação de polícia perto de minha casa, no centro da cidade, não foi o barulho dos 41 projécteis que me impressionou. Foi a luz à nossa volta, como se fosse de dia." E cai mais um porquê: "Porque é que há países que têm de se livrar das suas armas velhas ou testar armas novas assim?"
A idade dos porquês já ela tinha passado num mundo que descreve de "insanidade total". Quando era criança, nos anos 80, "os meus pais aconselhavam-me a não falar sérvio alto nas ruas" de Pristina, capital de um Kosovo onde a minoria sérvia passou de cerca de 30% na antecâmara da segunda guerra, para pouco mais de 5% uma década depois da última guerra. "Ninguém fala dos anos 70 e 80 em que aconteceram muitas migrações silenciosas de sérvios, além de raptos, assassínios e violações. Só falam dos anos 90, quando voltei a poder falar a minha língua no lugar onde nasci", recorda da época que os albaneses classificam de apartheid étnico, quando Milosevic tirou a autonomia à província de maioria albanesa, na primeira sirene de aviso do fim da Jugoslávia. Nessa altura, a tensão entre as duas comunidades crescia ao ritmo do corpo da adolescente Ivana. Os pais precaviam o futuro dela e das duas irmãs: "tal como muitos outros sérvios, em 1991 ou 1992, começámos a construir uma casa no centro do país". Era o prelúdio de uma partida que as bombas da NATO vieram traçar.
Por aquele rio triste
Ao contrário do quiosque de Belgrado nos últimos dias (e muito provavelmente do de Pristina em sentido oposto), as vítimas guardam as fotografias das outras vítimas, sem nacionalidade, universais: "lamento tudo o que aconteceu. Nunca mais vou esquecer a tristeza daquele rio de albaneses a fugirem de Pristina em Marco de 1999. Lembro-me de uma criança que levava uma pequena cadeira nas mãos, como se fosse a coisa mais preciosa. Vivi a mesma tristeza, três meses depois, num rio de sérvios. Em duas horas fiz a mala de 21 anos de vida. Senti-me miserável... Não sei dizer". Horas antes de partir, Ivana pressentiu que os pais preparavam a decisão. Foi dar uma volta: "despedi-me de lugares como a escola primária". O casal arriscou ficar mais tempo. O pai foi raptado mas libertado mais tarde "por milagre". Caso contrário, faria parte dos quase quatro mil mortos oriundos de todas as comunidades do Kosovo, cujas famílias ainda esperam, lembra a Amnistia Internacional, por justiça. Ivana está cansada dos números e da retórica.
Minoria abandonada
"A UE elogia homens como Thaçi e Haradinaj", dois antigos membros do Exército de Libertação do Kosovo. O primeiro é o actual chefe do Governo kosovar, enquanto o segundo foi absolvido pelo TPI de Haia. "Se há justiça, devia ser para todos", sentencia Ivana, formada em direito. "A minha raiva direcciona-se para aqueles que permitem que isto continue a acontecer... Ninguém se preocupou connosco, que só queríamos ter vidas simples... O que é que se diz dos acontecimentos de Março de 2004?". Sobre a mesa, outra vez o último número da Vreme, titula "Purgatório étnico", totalizando as 900 casas sérvias queimadas, 35 igrejas ortodoxas e os 4000 deslocados de 17 e 18 de Marco de 2004. Ivana sabe que no limbo das estatísticas negras, cada indivíduo vale 100%, seja "sérvio ou albanês", mas o que a revolta são "os critérios diferentes". Ela não precisa socorrer-se da estatística a que pertence. O Alto Comissariado da ONU para os refugiados contava, em 2005, cerca de 200 mil deslocados do conflito dentro do país, dos quais cerca de 150 mil seriam sérvios. Ressalvando aqueles que trocaram os enclaves pela região de Mitrovica, a conclusão é que cerca de metade da minoria sérvia que vivia no Kosovo por altura dos bombardeamentos fluiu no mesmo rio que Ivana. Neste mapa de exilados da primavera das bombas, ela concorda que "só os velhos ficam. O Kosovo nunca mais será multicultural". Já voltou várias vezes à cidade onde se sente uma estranha e vai voltar lá daqui a poucas semanas. Num dos primeiros regressos, a família recuperou a casa para logo a vender. Não restava nada, para além de um buraco negro na memória. "Levaram tudo. Porque é que levaram os meus diários?". Belgrado é agora a cidade onde Ivana escreve os seus diários.


Dn

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