Boris Vian tinha 25 anos quando confidenciou a Simone de Beauvoir que o seu coração não duraria mais do que uma dezena de anos, se não parasse de tocar trompete, diziam-lhe os médicos .Continuou a tocar com a inquietação de sempre, escreveu ficção e poesia, traduziu, passou por um sem-fim de actividades artísticas e morreu na escuridão de uma sala de cinema, a visionar uma má adaptação de uma novela sua, faz hoje exactamente 50 anos.
Os médicos enganaram-se por pouco: a trompete de Bisonte Encantado (Bison Ravi foi o seu primeiro pseudónimo literário) calou-se de vez na manhã de 23 de Junho de 1959, quando ele tinha 39 anos.
Morreu desencantado com a escrita, que abandonara seis anos antes, sem qualquer sucesso importante em vida. Na década de 60 começou a ser reabilitado, passou a escritor de culto e agora, visto com a distância do tempo que passou, é apontado como um marco das letras francesas do Século XX.
Em França, 2009 é um 'ano Boris Vian' e não têm parado as homenagens, as reedições, as exposições, as novas gravações dos seus poemas.
O frenesim pode ser seguido em http://www.borisvian2009.blogspot.com/, ou ainda em http://www.borisvian.org/, da Fundação criada pela viúva, Ursula Kubler. Paradoxalmente, a primeira obra que Vian viu publicada foi um livro técnico, a sua tese de curso.
Engenheiro de formação, exerceu essa actividade com rigor, mas sem grande entusiasmo - tinha família e bocas para sustentar, dizia. As noites eram para o jazz: sentia que era a sua razão de existir, mesmo que fosse para viver rápido e morrer jovem.
Toca na orquestra de Claude Abadie, que no pós-guerra ganhou notoriedade em França e na Bélgica, mas também em clubes parisienses, sobretudo da efeverscente Saint-Germain-des-Prés, como o lendário Tabou.
Henri Salvador, um dos maiores músicos de jazz francês, assegurava: «Boris só vivia para o jazz, só ouvia jazz, exprimia-se pelo jazz». Carole, a filha, foi mesmo baptizada por Duke Ellington, um dos muitos 'gigantes' da música com que se cruzava nas noites, «mais belas que os dias».
Mas Boris Vian não era só a música, a pulsão da escrita foi-se desenvolvendo, lenta e certeira. Primeiro, os poemas «para a gaveta», depois os pequenos contos, publicados na imprensa, resguardados nos pseudónimos como o anagrama Bison Ravi.
A 'coabitação' entre a escrita e a música era inevitável, como está bem simbolizado no símbolo da exposição patente no Museu das Letras de Paris, L´'écume des années Vian: uma trompete, repleta de palavras manuscritas.
É difícil perceber, confrontados com o actual culto da obra, que ainda antes de A Espuma dos Dias e o Outono em Pequim tenha escrito um 'romance negro', procurando seguir todos os cânones vindos dos EUA, forjando um autor, Vernon Sullivan, e apresentando-se como alegado tradutor.
Vernon Sullivan é Vian. Nesse Irei Cuspir-vos nos Túmulos, como em Os Mortos têm Todos a Mesma Pele, Morte aos Feios e Elas não Dão por Ela. Escritos entre 1947 e 1948, venderam bem mas só lhe trouxeram dissabores: condenação por atentado aos bons costumes, severa multa e prisão, com pena suspensa.
Leitor compulsivo do novo romance policial americano, traduziu autores interessantes como Richard Wright, James Cain, Omar Bradley, Nels Algren e A.E. Van Vogt.
Em seis anos apenas, entre 1947 e 1953, escreve o essencial da sua obra de ficção, até desistir de vez e dar por terminada a sua rápida carreira de ficcionista.
Meia-dúzia de anos que chegou para A Espuma dos Dias, o Outono em Pequim e O Arranca-Corações. Mas também para As Formigas, compilação de histórias curtas. Dessa época é, também, a compilação O Lobisomem, mas de publicação já postuma, e A Erva Vermelha.
A criatividade é extrema, tanto nos ambientes como na própria linguagem, devendo muito ao existencialismo, mas sobretudo ao surrealismo e ao absurdo, ou não fosse admirador confesso de Alfred Jarry e da Patafísica, a «ciência das soluções imaginárias».
No Outono em Pequim adere ao «título arbitrári» dos surrealistas, já que não se passa no Outono, nem na China, mas no Verão e no deserto da inventada Exopotâmia. No Arranca-Corações todas as crianças têm nomes invulgares, como Citroen, e há meses como Novreiro, Marulho e Dezarço.
Quanto aos seus poemas, só apareceram em livro depois da morte, mas muitos ganharam nova vida nas vozes de cantores de sucesso, como Yves Montand, Mouloudji e Serge Reggiani.
Je Voudrais pas Crever e Le deserteur estão na primeira linha, sobretudo este, tornado um clássico pacifista, adoptado pelos manifestantes no Maio de 68 e cantado, entre outros, por José Mario Branco.
A lista de intérpretes não pára de crescer e até Carla Bruni já anunciou que vai gravar Vian. Praticamente toda a obra de Boris Vian está editada em português, em editoras como Assírio e Alvim, Publicações Dom Quixote, Estampa, Vega, Utopia e, agora, Relógio d´Água, que aposta na publicação integral.
Lusa / SOL
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