Mãe! aqui me tens, metade de mim, sem saber que metade me pertence.
Aqui me tens, de gestos saqueados, onde resta a saudade de ti e do teu mundo de medos.
Meus braços, vê-os, estão gastos de pedir luz e de roubar distâncias.
Meus braços cruzados em cruz de calvário dos meus degredos.
Ai que isto de correr pela vida, dissipando a riqueza que me deste, de levar em cada beijo a pureza que pariste e embalaste, ai, mãe, só um louco ou um Messias estendendo a face de justo para os homens cuspirem o fel das veias, só um louco, ou um poeta ou um Cristo poderá beijar as rosas que os espinhos sangram e, embora rasgado, beber o perfume e continuar cantando.
Mãe! tu nunca previste as geadas e os bichos roendo os campos adubados e o vizinho largando a fúria dos rebanhos pela flor menina dos meus prados.
E assim, geraste-me despido como as ervas, e não olhaste os pegos nem as cobras, verdes, viscosas, espreitando dos nichos.
De mão nua, entregaste-me ao destino. Os anjos ficaram lá em cima, cobardes, ansiosos.
E sem elmos ou gibões, nem lutei nem vivi: fiquei quieto, absorto, em lágrimas — e lá ao fundo esperavam-me valados e chacais rancorosos.
Mãe! aqui me tens, restos de mim.
Guarda-me contigo agora, que és tu a minha justiça e o exílio do perdido e do achado.
Guarda-me contigo agora e adormece-me as feridas com as guitarras do fado.
Mas caberá no teu regaço o fantasma do perdido?
Fernando Namora, in "Mar de Sargaços"
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