domingo, 26 de julho de 2009

Desde que rime, é poesia

A música é um eficaz disfarce de limitações poéticas. Quando vamos no carro a cantarolar uma música que passa na rádio, raramente pensamos no significado das letras. Apenas repetimos as palavras que ouvimos sem dar grande atenção à mensagem que o artista tenta transmitir. Talvez porque estamos extasiados com a voz melodiosa do cantor. Ou com a nossa. Mas, sem música, o crime perfeito deixa de ser perfeito: de repente, a letra da canção perde o aparente bom gosto. E o sentido. Aqui ficam alguns exemplos de candidatos a Camões-com-guitarra-e-bateria-de-fundo:E se partires de manhã Deixa a sombra e o chão Esta noite eu e tu Somos a palma e a mão
(A Palma e a Mão, João Pedro Pais)Repare-se na mestria métrica (artisticamente ignorada, coisa que exige coragem por parte do autor), mas, sobretudo, tente-se descortinar o que o João Pedro quer dizer com isto. Um é a palma e o outro é a mão? Mas a mão inclui a palma... E os dedos também, já agora... Quer isto dizer que um dos protagonistas é mais do que o outro? Ou significa que são indissociáveis, de uma forma que deve fazer todo o sentido na cabeça do João Pedro? Mas neste caso levanta-se outra questão, bem mais interessante: será que uma mão que perde os dedos ainda pode ser chamada de mão ou passará a ser apenas uma palma?
Deixemos o Poeta João Pedro e passemos ao Poeta André.Gosto de ti desde aqui até à lua Gosto de ti desde a lua até aqui Gosto de ti simplesmente porque gosto E é tão bom viver assim
(Adivinha o Quanto Gosto de Ti, André Sardet)Fico extasiado com a implícita sinceridade do André a admitir, sem vergonhas, a sua óbvia falta de ideias, ao dizer "gosto de ti simplesmente porque gosto". Imagino-o sentado no sofá da sala de estar, de guitarra ao colo, a cantar para a filha "Gosto de ti desde aqui até à lua, gosto de ti desde a lua até aqui...". Entretanto hesita; pára de tocar e começa a puxar pela cabeça: "Mas gosto de ti porquê, filha? Eu sei lá... Estas coisas não se explicam."; "Então não expliques, papá."; "Boa ideia! É mesmo isso! Porque é que me hei-de dar ao trabalho? Gosto de ti simplesmente porque gosto, e é tão bom viver assim. Rima? Rima! Siga para bingo."
Um advérbio de modo, seja ele qual for, fica sempre bem numa canção. Antes que a cabeça comece a doer, passemos ao último exemplo.Mas nisto o vento sopra doido E o que foido Corpo num turbilhão
(O Sopro do Coração, Clã)Podem tentar convencer-me de que a Manuela Azevedo quer dizer "e o que foi do corpo num turbilhão". Mas macacos me mordam se ela não diz "foido".
É preciso é rimar. A poesia que se foida.

Sem comentários: