Que marteladas eram aquelas que se ouviam no andar de cima durante a noite? Seria gente surda a que ali morava, para ouvirem a televisão aos altos berros? Nos primeiros tempos, o casal com duas crianças e uma terceira a caminho ficou à espera que a vida no prédio voltasse à normalidade. Mas o que se seguiu foi o calvário de noites a fio sem pregar olho, porque em lugar do silêncio ouviam-se estrondos, mais marteladas e música.No início deste mês, fez-se justiça. O Supremo Tribunal de Justiça condenou a barulhenta vizinha desta família a indemnizá-la em cerca de 25 mil euros. "Não é uma sentença comum. Lamento que não haja mais tribunais a tomar este tipo de decisão", comenta o presidente da Associação de Inquilinos Lisbonenses, Romão Lavadinho, ressalvando que são raros os queixosos que decidem ir a tribunal, devido aos custos envolvidos. Isso, aliado ao facto de os autores do ruído se transformarem, perante as reclamações, em potenciais agressores dos queixosos, faz com que "a maioria das pessoas se acobarde" quando é confrontada com uma situação do género. "Esta sentença vai ajudar muita gente a recorrer a tribunal", antevê o representante dos inquilinos de Lisboa.Menos de um mês depois das primeiras queixas na PSP, em Setembro de 2001, o casal e as duas crianças começaram a sofrer retaliações. Primeiro a vizinha de cima atirou-lhes água. O polícia que tomou conta da ocorrência escreveu no relatório que as roupas que vestiam cheiravam a lixívia. Depois foi um vaso em barro, que atingiu o pai das crianças na cabeça. Veio acompanhado de um rol de insultos e ameaças: "Seus cabrões de merda", "Porcos", "Podem ir chamar a polícia, que eu não abro a porta", "Vou fazer-vos a vida infernal com o barulho que vou fazer". A promessa foi cumprida, ao ponto de a família ter de ir dormir para pensões e hotéis várias vezes."Terror de voltar a casa"Ficou provado em tribunal que as duas meninas, uma de quatro e outra de seis anos, "tinham terror de voltar para casa", enquanto a mãe, que estava grávida, "passou a ter crises compulsivas de choro e a andar deprimida". A família passou a frequentar o psicólogo. Às despesas com a saúde mental e com os retiros temporários fora de casa juntavam-se ainda os gastos com obras destinadas pelo menos a minorar o problema. O primeiro tecto falso não resultou. Foi preciso fazer novo isolamento acústico. Mas as paredes de tabique continuavam a deixar-lhes as madrugadas em branco.Um ano depois de o pesadelo começar no apartamento de Lisboa onde moravam, em Abril de 2002, meteram a acção em tribunal. Não houve instância judicial que não lhes tenha dado razão. Foram os recursos da vizinha de hábitos nocturnos que levaram o caso até ao Supremo. Nessa altura já o Tribunal da Relação tinha dito que quando se impede sistematicamente alguém de repousar à noite se põe em causa o direito constitucional a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado. Os juízes-conselheiros salientam que casos como este dispensam medições dos níveis de ruído, um processo complicado e por vezes infrutífero: "A ilicitude de um comportamento ruidoso que prejudique o sono de terceiros está precisamente no facto de, injustificadamente e para além dos limites do socialmente tolerável", se lesar "o direito à integridade pessoal".
publico
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