Um documento secreto, agora desclassificado a pedido dos historiadores António de Araújo e António Duarte Silva, revela que o estado português decidiu manter uma reserva de napalm como "dotação de emergência" no "teatro de operações" da Guiné já depois do 25 de Abril de 1974. Carlos Fabião pediu, Francisco da Costa Gomes autorizou.
O ofício, que os historiadores descobriram no Arquivo da Defesa Nacional, é de 27 de Maio de 1974 e está assinado pelo brigadeiro Carlos Fabião, então comandante-chefe na Guiné. Nele, Fabião pede instruções ao chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas sobre o que fazer às bombas de napalm que havia na Guiné: "1170 bombas NAP de 350 litros e 790 bombas NAP de 100 litros". Fabião sugere a transferência das bombas de napalm para a ilha do Sal, Cabo Verde, "onde lhes seria dado posterior destino", mas defende que se mantenha no "teatro de operações" da Guiné uma "dotação de emergência". O ofício é recebido no gabinete do CEMGFA a 6 de Junho. Costa Gomes, que depois do 25 de Abril volta ao comando das Forças Armadas, despacha favoravelmente a 15 de Junho a proposta de Carlos Fabião: "Urgente. Ao CEMGFA para proceder de acordo com o n.o 3." Assinado Francisco da Costa Gomes.No artigo "O uso de napalm na guerra colonial", publicado na última edição da revista "Relações Internacionais", os historiadores lembram que, no depoimento a Manuela Cruzeiro, do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra, Francisco da Costa Gomes disse desconhecer a utilização de napalm na Guiné. "Estranhamente", reconhecem, face aos dados agora revelados. Embora tenha admitido a presença de bombas de napalm em Angola, o ex-Presidente da República negou, na entrevista a Manuela Cruzeiro, tê-las alguma vez utilizado: "Todos os métodos que pudessem prejudicar as populações, como, por exemplo, a utilização de produtos químicos ou de bombas de napalm iam contra os meus princípios."Como escrevem António de Araújo e António Duarte Silva, "foi Costa Gomes que, na qualidade de Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, que reassume a 30 de Abril de 1974, despacha favoravelmente, e com carácter de urgência, a proposta de Fabião para a retirada de bombas da Guiné: 1170 bombas de 350 litros e 790 de 100 litros. É singular, por isso, que, anos depois, Costa Gomes haja afirmado nada saber quanto ao uso de napalm na Guiné". No ofício que dirige a Costa Gomes, os argumentos de Carlos Fabião evidenciam como, apesar de já ter passado um mês sobre a revolução de Abril, a descolonização imediata não estava nos planos do Estado e os guineenses continuavam a ser tratado por "inimigo", "In" no jargão militar. A transferência do napalm para a ilha do Sal é sugerida por Carlos Fabião por razões estratégicas: "Dado que, pelo seu volume, não é possível subtraí-las das vistas a possíveis observadores, e ainda porque a utilização de napalm tem sido motivo de acérrimas críticas feitas pelo In, na sua campanha diplomática e psicológica, torna-se necessário retirá-las do TO [teatro de operações]."Os historiadores divulgam outro documento, classificado como "muito secreto", sem data, que, apesar de não ser assinado, tem autoria atribuída a José Luís Ferreira da Cunha, do gabinete do chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. Pelos carimbos, os historiadores identificam a data de 9 de Maio de 1973 como "data aproximada da sua elaboração e/ou distribuição". Neste texto, o autor faz a defesa da posse e utilização do napalm e outras armas incendiárias pelas Forças Armadas. Para os historiadores António de Araújo e António Duarte Silva, "não é de excluir que a informação de Ferreira da Cunha tivesse um objectivo: justificar, perante o poder político, a continuação do recurso àquele tipo de armamento". E interrogam-se: "Na verdade, tratando-se de um documento interno, classificado de 'muito secreto', por que motivo teria Ferreira da Cunha necessidade de defender de forma tão empenhada a utilização de bombas incendiárias? Para quê uma retórica tão inflamada?" Para os autores, o documento atribuído a Ferreira da Cunha "mais do que um relatório objectivo e imparcial, constitui uma autêntica alegação de defesa do uso do napalm". Avançam uma hipótese de explicação: "Isto permite supor, ainda que se trate de uma mera hipótese, que, a dada altura, sensivelmente em meados de 1973, pode ter sido questionada a utilização de bombas incendiárias. Nos meios políticos ou nos meios militares. Mais provavelmente nos meios políticos. E avançando ainda mais no campo das hipóteses, nos meios governativos - talvez pelo ministro dos Negócios Estrangeiros ou até pelo próprio presidente do Conselho".O documento do gabinete do Estado-Maior General das Forças Armadas aponta "factos concretos sobre a utilização dos incendiários nos TO ultramarinos". Segundo o Estado-Maior, "os Comandos Chefes e Comandos de Regiões Aéreas do Ultramar reduzem ao mínimo as operações napalm e rodeiam-nas do maior sigilo possível", embora se assinale que "como há muitos executantes intervenientes tal sigilo não se pode garantir a 100%". Depois explica a utilização em cada colónia. Em Angola, "utilização interdita do napalm, na medida em que é muito pouco eficaz em relação aos objectivos existentes neste teatro de operações". Mesmo assim, "excepcionalmente, em situações de intervenção de emergência associadas a carência de 'tectos' (que torna proibitivo o uso de outros tipos de bombas) o napalm é utilizado muito limitadamente, após estudo e referenciação de objectivos nitidamente militares". A Guiné é o teatro de operações "que tacticamente mais carece da utilização de meios incendiários". O Estado-Maior General aponta como consumo médio mensal na Guiné 42 bombas incendiárias de 300 kg, 72 bombas incendiárias de 80 kg e 273 granadas incendiárias M/64". E faz notar que "a imperiosa carência táctica justifica os eventuais inconvenientes de ordem política, os quais sempre existiram visto que a sua não utilização não limitaria as acusações sistemáticas da propaganda inimiga".Em Moçambique, a utilização é "muito parcimoniosa": "Desde 1968 até final de Fevereiro de 1973 o consumo médio verificado é o seguinte: bombas incendiárias de 300 kg (14), de 80 kg (47), granadas incendiárias M/64 (29)". Como concluem os investigadores, "a incómoda e desconfortável presença do napalm em África prolongou-se, pelo menos, até Maio de 1974".
ionline
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